Sons urbanos: a música nos circuitos da economia urbana em cidades brasileiras

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Autor: Villy Creuz, de la Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – FFLCH de la Universidade de São Paulo

 

Resumo

O crescimento das cidades brasileiras, desde a década de 1960 até os dias correntes, tem atribuído aos geógrafos novos problemas. Milton Santos assumiu a tarefa de pensar a urbanização nos países do terceiro mundo e propunha, em 1975, no livro L´espace Partagé, entender a urbe a partir de dois subsistemas econômicos, os circuitos superior e inferior, imbricados em uma relação de subordinação e complementaridade diante de três variáveis centrais: organização, capitalização e tecnologia. 

Nosso caminho de método parte dessa abordagem ao perpetrar a análise da economia urbana nas cidades brasileiras de São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre (cidades da Região Concentrada), Goiânia (na região Centro-oeste) e Recife (região Nordeste), com empresas e atividades ligadas à produção, distribuição e consumo musical. Isto é, micro, pequenos e médios estúdios de gravação e ensaio, pequenas e médias gravadoras, lojas de vendas de CDs e DVDs, grupos musicais e casas de show. 

O meio construído urbano tem um papel central ao permitir a coexistência de diversos agentes, com distintos graus de poder e influência, com capacidades desiguais em pagar aluguéis ou o metro quadrado de certas porções das cidades. De modo que o território aufere novos usos: é o caso dos estúdios de gravação e ensaio que se utilizam das residências como locais de trabalho. A configuração espacial, as formas, como ruas, avenidas, pontos de coletivos e linhas de transporte, que limitam ou ampliam a mobilidade urbana, são importantes para apreender as razões pelas quais agentes que trabalham com música estão dispersos na cidade. A propaganda feita através, mormente, do “boca a boca” ganha maior densidade na contiguidade metropolitana.

A nova divisão territorial do trabalho atribui às antigas formas espaciais novos conteúdos, a permitir a criação de novas atividades ligadas à produção, distribuição e consumo de música. Nesse sentido, a economia urbana se densifica a partir da constante e dilatada demanda por música no período. 

 

Palavras chave: divisão social e territorial do trabalho, cidades, produção musical

 

Abstract

Since 1960s up to date the growth of Brazilian cities has given new challenges to geographers. Milton Santos took the task of thinking about urbanization on sub developed countries. In 197 M. Santos developed a comprehensive way to understand the urbanization, by which two different economic subsystems shall be considered, namely upper and lower circuits, which are both embedded in a subordinate and interlinked set of three main concepts: organization, capitalization and technology.

N.B.: This statement is explained further in the book L´espace Partagé,

Milton Santos’ approach is replicated in this paper in a certain extend to understand the urbanization pattern of a few Brazilian cities: Sao Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Goiania and Recife. Those cities represent a substantial proportion of the highest and lowest purchasing power areas across the country in terms of music-related activities and its chain value: production, distribution and consumption, but not limited just to big companies as small enterprises have also a role to play providing means for selling CDs and DVDs, recording studios and so on and so forth.

It should also be expected that a city environment had a vital role by allowing the coexistence of different agents, whose different influence powers will determine and change the environment itself as rental fees increase and residential building are turned out into recording studios for instance. The city provides a place to an interrupt exchange, which keeps up the information flow. It is also a place of resistance and conflict in which different businesses, regardless their sizes, can co-exist by sharing workforce and soaring consumption.

The more established the infrastructure is the more efficient will be the ‘word of mouth’ type marketing. So the city layout as such (streets, bus stops, tube stations, etc) causes an enormous impact on people mobility and, therefore, it is vital to understand the reasons by which the music industry is found all over the city.

As consumption increases in order to match a shorter lifetime of goods, a new labour distribution can be observed in the globalization era (Santos, 2000). That distribution varies with a set of new techniques and activities related to music production, distribution and consumption. Hence it can be shown also a increased demand on the music market over time.

 

“O Brasileiro é um povo esplendidamente musical. Nosso populário sonoro honra a nacionalidade”1

Mário de Andrade

 

 

Introdução

 

A investigação se ocupa das novas manifestações da economia nas metrópoles brasileiras (São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Goiânia e Recife) no período da globalização. Nosso enfoque analisa as cidades, como meio construído urbano e mercado, a ganharem novos conteúdos com a banalização da técnica (Santos, 1994, p. 24). 

 

Esse existir compartido, entre atores com diferentes níveis de força e influência, parece-nos possível uma vez que haja uma grande concentração de forças produtivas e de meios para realizá-los, em especial, nas grandes metrópoles. 

 

As cidades brasileiras que concentram amplas parcelas da população são, ao mesmo tempo, grandes mercados, com superpostas divisões territoriais do trabalho, e também, grandes concentrações de trabalho morto, isto é, vasto meio construído urbano2. 

 

Nesse meio construído urbano os atores são segmentados em distintos graus de capital, tecnologia e organização, formando o que M. Santos (1979, p. 369) conceituou de circuitos da economia urbana, o superior e o inferior.

 

Enquanto ramo da economia urbana, a música se constitui com uma larga densidade de firmas, dentre as quais estão os estúdios de gravação e ensaio musical, músicos que atuam como empresas (registradas ou não), gravadoras, produtoras de áudio, lojas de discos e casas de show. 

 

Esses agentes revelam o volume da divisão social e territorial do trabalho – focada na ação humana e também relacionada mais diretamente ao dado locacional dos fatores de produção e de distribuição de tarefas. As formas de considerar esse enfoque são complementares e interdependentes e se relacionam aos serviços de produção, distribuição e comercialização da música em cidades brasileiras no circuito superior marginal e no circuito inferior da economia urbana. Para María Laura Silveira (2007, p. 6), “um olhar sobre as formas de trabalho e suas relações com o meio construído permite refletir sobre os conteúdos existenciais do espaço, isto é, a vida e as técnicas, que indicam como o território é utilizado”.

 

Intensificadas pela densa vida de relações, as cidades tendem a se afirmar como o grande lócus do trabalho, lugar em que há concentração de pessoas e, por conseguinte, de demandas. Em outras palavras, gente junta gera trabalho. A realização de demandas não satisfeitas fomentam atividades imitativas menos capitalizadas e organizadas no território utilizado das metrópoles.

 

Nas palavras de Milton Santos (1985, p. 14) “os circuitos produtivos se dão, no espaço, de forma desagregada, embora não desarticulada, a importância de cada um daqueles processos têm, a cada momento histórico e para cada caso particular, ajuda a compreender a organização do espaço”. Destarte, tratamos de situações concretas para contribuir no entendimento mais amplo do espaço geográfico. 

 

A música nas metrópoles

 

A música alcança todas as camadas da sociedade, cuja demanda, de modo genérico, é elástica. Tal demanda tende a crescer no atual período, em relação à capacidade de aquisição dessas mercadorias musicais (compra ou reprodução de álbuns), com consumos diretos e indiretos. O consumo direto é a compra de faixas ou álbuns pela web, CDs, fitas e DVDs; já o consumo indireto implica o contato com sonoridade, como rádios nas ruas, carros com volume alto, propagandas (spots e jingles), televisão, entre outros.

 

Há meios, não necessariamente pela compra, de que a música chegue aos indivíduos. Ao usar o rádio, ao escutar passivamente a música nas ruas das cidades, ao ganhar discos promocionais e ao ouvi-la no transporte público. São formas de consumo musical que entendemos como consumo indireto, mas que também cria mercado, uma vez que fomenta a produção em si.

 

Tratada por autores como Michel Maffesoli (2009), Gilles Lipovetsky (2009), Néstor García Canclini (2008), George Yúdice (2006) e Daniel Barenboim (2009), a música é um elemento constitutivo da vida urbana, da práxis cotidiana. Escuta-se música em todos os lugares. 

 

Há um protagonismo musical na atmosfera das mais variadas situações, no encontro de amigos, no lazer, no trabalho, na residência, nas trilhas sonoras de filmes, novelas e teatros. Ouve-se as canções e as melodias a todos os instantes. Somos tomados pela musicalidade.

 

Nessa direção retomamos Lipovestky (2009, p. 6) ao asseverar que o indivíduo “vive ligado à música desde o amanhecer até a noite, como se tivesse a necessidade de estar sempre em outro lugar, de ser transportado e envolvido por uma ambiência sincopada”. Entende-se nessa dinâmica a qual o autor faz referência o crescimento da demanda musical. Todavia, não é nosso intuito abordar de forma sistemática a relação antropológica da subjetividade social ao fenômeno musical das metrópoles, mas, sim, reforçar o caráter da música enquanto protagonista de um fluxo econômico nas cidades, dado pelo caráter especifico da urbanização brasileira, resultado também da organização do trabalho.

 

Quanto à difusão musical, não devemos nos furtar da atenção aos deslocamentos. No transporte público nas cidades observamos que com a individualização dos semoventes musicais, assistimos às famílias de objetos técnicos que permitem a locomoção dos indivíduos sonorizados através de tecnologias, como os tocadores de música. 

 

O primeiro grupo desses equipamentos foram os walkman´s – tocadores de fitas cassete, datado da década de 1980. No momento seguinte, os tocadores portáteis de CDs nos 1990 até os anos 2000. Hoje, o terceiro grupo de tecnologias são os semoventes de música digital (MP3), o que inclui os telefones celulares. 

 

Igualmente, no transporte privado a música está em automóveis particulares, com sistemas técnicos de som embutidos a criar a sua própria ambiência. Cabe ressaltar a participação que houve no quadro de evolução desses semoventes musicais pela indústria automobilística no incremento dessas tecnologias em veículos automotores. A música se liga ao éthos do dirigir.

 

A telefonia celular é um dispositivo de música portátil convertida noutro nicho de mercado. A venda de músicas digitais para servir de toque, os ringtones, e também como objeto técnico apto a difundir e captar música da web transforma-se, igualmente, em um novo amplificador de dividendos às empresas do circuito superior do ramo musical, como a Sony, Universal, EMI, BMG, entre outras. 

 

A agregação de negócios entre empresas de telecomunicação e as majors3 acontece de forma direta. A associação entre firmas, no Brasil, entre Vivo, Claro, Oi e Tim e as corporações do ramo musical hegemônico, cristaliza a parceria entre grandes grupos de empresas no domínio musical. A comunicação é a nova divisa a qual se vincula a indústria da música no país.

 

Essa é uma nova tendência da globalização, cujos meios de produção são cada vez mais seletivos e concentrados. Nesse sentido, María Laura Silveira (2008, p. 15) afirmará que a “Forma de organização [do território] autoriza também uma alta concentração da riqueza”. 

 

Nesse tocante, em 2009, houve o aumento de 159,4% no volume de vendas digitais da música por meio da Internet4. Nesse mesmo ano a receita das gravadoras5, que reportam dados à Associação Brasileira de Produtores de Discos (ABPD), declarou que do montante de músicas digitais, 58,7% foram receitas advindas da Internet e 41,3% com vendas de músicas através de telefones móveis. 

 

As empresas da música, de acordo com a ABPD, em seu relatório anual de 2010, referindo-se ao ano anterior, movimentou o montante de R$ 358, 4 bilhões com a venda de música nos formatos físicos (CD, DVD e Blu-ray) e formatos digitais (via Internet e telefonia móvel).

 

A música é informação, porque transmite ideias e valores. De sorte que seu conteúdo é caro ao receptor e é calculada pelo emissor, enquanto mercadoria, mas também enquanto veículo de conteúdos. 

 

Nesse sentido, a música edifica ritmos do tempo na percepção subjetiva do comportamento e na compreensão da constante sucessão de instantes6. É uma forma de apreender a realidade, de construir o entendimento do mundo. 

 

O novo meio é integrado pela música. No entendimento de Georges Friedmann (1968, p. 52), “a vida cotidiana do homem das cidades, o nôvo meio acentua a transformação de sua sensibilidade e de sua percepção”. Seria a música, em última análise, produto e produtora do meio geográfico, aqui entendido como espaço geográfico. No momento em que é produto reflete as aspirações e cosmovisões do conjunto social, e, ao mesmo tempo, em que, enquanto informação, como meio de interlocução com o pensar e o sentir, instiga novas ideias e novas percepções. 

 

A produção musical nas grandes cidades, nesse período da globalização, tende a ganhar mais força, já que o consumo jamais foi dilatado dessa forma e os fatores de produção tornados tão favoráveis à fabricação, distribuição e consumo nas metrópoles.

 

O resultado é a multiplicação de empresas e de indivíduos que fazem da música uma maneira de se inserir na divisão social e territorial do trabalho nas metrópoles, em diferentes escalas, com diferentes agentes e distintos poderes. Segundo Silveira (2007, p. 152) “Na cidade grande, a superposição de divisões do trabalho hegemônicas, hegemonizadas e não-hegemônicas cria uma diversidade socioespacial, que se completa com formas de cooperação também variadas”. Se a cidade congrega os fatores de produção e também a força de trabalho, o resultado será uma explosão de formas de produzir, distribuir e comercializar.

 

A frequência das rádios AM e FM está recheada de música, mormente, comercializadas pelas gravadoras através do pagamento de jabá, isto é, o montante pago pela transmissão das canções em rádios. Nas cidades visitadas foi comum essa prática. Geralmente, o valor é estipulado de acordo ao número de vezes em que é tocada na programação, proporcional ao apelo do índice de audiência da empresa. Entretanto, as rádios comunitárias7, com alcance no lugar e as chamadas “rádios piratas” oferecem outros conteúdos em seu discurso, sobretudo, na música como veículo de ideias. São diferentes mecanismos de difundir música nas metrópoles, com forças desiguais. 

 

A difusão musical acontece através da Internet. A compartimentação de arquivos digitais promove as trocas de músicas entre computadores ou são disponibilizados na rede para o download. 

 

A venda de discos físicos em páginas da web dos grupos musicais é corrente. As bandas acabam por dispor de reservas estocadas de CDs e os vendem por transferência bancária e os enviam via correio postal. Do mesmo modo, acontece a venda de músicas em formatos digitais nesse mesmo parâmetro de comercialização, em sítios de grupos musicais. 

 

A comercialização de discos se dá nas contiguidades do meio construído urbano (em diferentes formatos como CD de MP3, CD convencional, LP ou fita magnética), mormente, nas centralidades, subcentralidades e nas periferias das metrópoles nacionais. Bancas de jornal, ‘vendinhas’ de frutas e legumes, micro lojas de discos e de diversos outros produtos, são mostras de comércio musical realizado pelos micro e pequenos atores, em que artistas independentes deixam CDs a vender por consignação.

 

Embora haja diminuição da venda física de discos, produtos das grandes gravadoras, o consumo de música não diminuiu. Outra forma de comercializar música se dilatou: a venda de CDs em casas de show, nas quais o artista negocia diretamente com o público. 

 

Artistas da periferia de São Paulo, com lotes de discos em suas residências (onde estocam os CDs), costumam enviar a colegas e conhecidos em outras cidades seus discos. O valor, normalmente, é reduzido (R$ 5,00), com a finalidade de que seu trabalho venha a tornar-se melhor difundido pelas comunidades em outras localidades. É um recurso para propagandear sua música, e dessa maneira, estimular o público a comparecer aos shows. Os shows que são, cada vez mais, a maior fonte de renda de artistas ligados à música.

 

As vendas nos coletivos nas metrópoles paulistana e carioca têm se tornado mais rotineira. Eventos (Santos, 1996) no quais o próprio artista oferece sua produção às pessoas no ônibus e nos trens. O preço do CD é R$ 2,00 nas situações analisadas. O principal objetivo é difundir ao maior número possível de pessoas seu trabalho. É o caso da banda Os Justiceiros. Uma nova manifestação de comercialização de música.

 

No presente, identificamos dois movimentos simultâneos: o alargamento do consumo e, casado a isso, a obsolescência antecipada do novo. A aceleração contemporânea (Santos, 1994, p. 29) faz a informação conhecer seu término prematuro, já que os modismos se sobrepõem.

 

Desse modo, estúdios de gravação, gravadoras e grupos musicais tendem a ganhar força e volume no uso do território, já que a demanda se amplia. Se o consumo de música é, como dissemos há pouco, uma demanda [elástica], na qual novos atores podem vir a se beneficiar. Os agentes do circuito superior marginal e inferior constituem esse conjunto de firmas, que diante de um grande meio construído e um grande mercado, encontram formas de manter suas atividades. 

 

 

A visibilidade dos invisíveis

 

O meio construído abriga atividades mais pobres e menos organizadas. O aluguel mais baixo em certas porções da cidade permite esse uso. O fator residência-trabalho amplia ainda mais essa possibilidade, congregando serviços em moradias e bairros residenciais das metrópoles.

 

As empresas que trabalham com música e que compõem os circuitos superior marginal, residual e emergente, e o circuito inferior têm como denominador comum o fato de que tendem a não permanecer visíveis na paisagem urbana. A razão apontada nas diversas entrevistas, nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Goiânia, Recife e Porto Alegre, é de que essas firmas não carecem da visibilidade para angariar clientes. Entre esses atores o “boca a boca” é um mecanismo eficiente de propaganda. 

 

Sob essas lentes, o meio construído urbano a congregar essas firmas, estúdio de gravação, estúdios de ensaio e gravadoras, é, normalmente, localizado em áreas residenciais ou antigas residências, localizadas em bairros não comerciais. As instalações ocupam o ambiente com novos equipamentos e instrumentos de trabalho, requalificando os conteúdos pretéritos do lugar, novos usos, novas funções, mormente, funções híbridas. 

 

De sorte que por estarem nessas porções da cidade e não haver propagandas essas empresas não são visíveis à fiscalização quanto a situação da mão de obra. Geralmente, os proprietários têm de um a três ajudantes, técnicos de áudio, a trabalhar em turnos ou por demandas extras. Esses funcionários recebem por hora de trabalho (horistas) ou pelo dia (diaristas), nesse último caso, agregando um conjunto de horas. Os valores pagos variam de um a dois salários mínimos8, sem nenhuma prerrogativa dos direitos trabalhistas, como INSS, férias, décimo terceiro, etc. 

 

A possibilidade da oferta de trabalho é crucial no desenvolvimento das metrópoles. O trabalho de atores com menor capacidade técnica, organizacional e capital proporciona maior volume de ocupação da mão de obra abundante nas cidades. Todavia, é insatisfatório que os direitos trabalhistas garantidos pela constituição não sejam logrados por todos.

 

Em todas as metrópoles da investigação (São Paulo, Rio de Janeiro, Goiânia, Recife e Porto Alegre), as empresas visitadas disponham de uma infraestrutura urbana satisfatória, com rede elétrica, saneamento ambiental, redes de transporte que chegavam às proximidades, loteamentos mais ou menos bem delineados pelas prefeituras municipais, com coletas de lixo, escoamento de água pluvial e capacidade para trânsito de pedestres em calçadas.

 

Dessas variáveis apontadas quanto à qualidade e a satisfação em relação ao meio construído, foi quase unânime aos entrevistados considerar o transporte público e o acesso a vias de circulação como central na escolha da localização de suas empresas, pois muitos dos músicos dependem de transportes coletivos para se deslocar e, muitas das vezes, transportam seus instrumentos de trabalho. Quando o local não é de fácil acesso, na maioria das vezes, o número de clientes tende a ser menor.

 

Na cidade de Goiânia, o proprietário de uma empresa de gravação musical, um estúdio, localizado em um distante bairro do centro, em um amontoado de ruas sinuosas, afirmou já ter perdido clientes devido à localização. Por essa razão, há a busca por parte dos músicos em firmas prestadoras desse serviço próximas às paradas de coletivos. Na cidade de Olinda, na região metropolitana de Recife, um estúdio de gravação e ensaio enfrenta dificuldade com o acesso dos músicos à rua sem asfaltamento, pois instrumentos pesados precisam ser carregados, conferindo constrangimentos físicos aos clientes. 

 

No que se refere aos instrumentos de trabalho, o oferecimento destes por parte dos estúdios de gravação e de ensaio, que dispõem de baterias, teclados, guitarras, baixos e violões, permitem o ingresso de indivíduos que, de outro modo, não poderiam possuir ou se deslocar. É um incentivo à produção. 

 

 

 

Fotografia 1. Porto Alegre. Imóvel do estúdio de gravação em área residencial, 2010. Autor: Villy Creuz

 

A imagem desse estúdio de gravação, em Porto Alegre, retrata a tendência à invisibilidade a qual fazemos referência nessas firmas, reforçando o caráter das trocas de informação pessoal como meio pelo qual os indivíduos passam a conhecer os estúdios, a dispensar, portanto, propagandas em fachadas ou anúncios.

 

A empresa da fotografia anterior é, também, um excelente exemplo do circuito superior marginal emergente na música, em que há uma maior capacidade organizacional, maior capacidade tecnológica na produção e maior valor agregado aos serviços se comparados às demais firmas do mesmo circuito. Nessa empresa o montante cobrado é calculado mediante o tempo despendido, segundo o valor da mão de obra e dos custos de produção, na execução de projetos ou em trabalhos específicos. Nesse estabelecimento há uma série de serviços prestados em que os clientes são agências de propaganda, comércios ou produtoras de vídeo. A demanda, nesse caso, refere-se à produção de jingles9 e spots10 e o trato com os clientes não implica no contato direto, “cara a cara”, pois as transações tendem a ser feitas por meio da rede de computadores e pelo telefone. 

 

Existe, do mesmo modo, uma sazonalidade particular da demanda por serviços em estúdios de gravação pertencentes ao circuito superior marginal emergente. Nos períodos eleitorais a procura na produção de trilhas para vereadores e deputados estaduais e federais é volumosa por conta das campanhas para os cargos do legislativo. 

 

As empresas, estúdios de gravação, estúdios de ensaio e gravadoras não dependem de uma economia de aglomeração para manterem-se ativos no mercado da música. Como frisamos, a propaganda acontece melhor pela troca de informação pessoal dentro de um mercado em que todos tendem a fazer interlocutores. Sustentam-se dispersos em diferentes porções da cidade com parceria e concorrência simultâneas. A interdependência entre esses atores indica uma rede de contatos que tende a diminuir o peso da variável localização.

 

Equipamentos em empresas do ramo da música não capitalizadas 

 

Estúdios de gravação e gravadoras de pequeno e médio porte contam com um ampliado e diversificado escopo de objetos técnicos. Esse conjunto de objetos a operar em sistema permite a produção da música como a conhecemos no atual período. 

 

Quando falamos que operam em sistema aludimos ao conjunto de tecnologias dentro de uma mesma firma e, também, ao conjunto de objetos que extrapolam os limites da empresa, sobretudo, os grandes sistemas de engenharia visíveis no meio construído urbano e que são pressupostos da existência de sistemas técnicos menores. As usinas de energia e a rede de distribuição elétrica são imprescindíveis a essas atividades. 

 

O período da globalização conhece o fenômeno da banalização das técnicas. O conceito trata do fenômeno em que equipamentos técnicos modernos são usados de forma ampla por um grande número de atores que, todavia, antes, não detinham tal possibilidade. A produção musical, outrora, era uma atividade que dependia de altos investimentos, excluindo os pequenos capitais e as pequenas firmas. 

 

O paradoxo da banalização técnica, referente à música, reside no fato de que foram os agentes do circuito superior os executores das ondas de modernidade tecnológica que permitiram a apropriação de outros usos. Isso significa que, hoje, os agentes do circuito superior enfrentam a concorrência da produção dos pequenos possibilitados, justamente, pela banalização dos objetos técnicos. 

 

De sorte que a pergunta pertinente é, portanto, quem regula quem na música? Na produção tende a haver menor controle, no sentido da capacidade em se criar produtos musicais. Nossa pesquisa aponta para essas novas formas de trabalho em cidades brasileiras. Mas não podemos sustentar esse argumento frente à distribuição e o comércio dos discos. Nesse ponto há um controle que parte de uma topologia das empresas hegemônicas capazes de macroorganizar o território nacional.

 

Diante desse espraiamento das técnicas, há, entre os atores do circuito superior, um forte discurso sobre a qualidade do som, do faturamento da indústria fonográfica, dos empregos que são perdidos em atividades musicais e da suposta ligação entre discos copiados (piratas) e o narcotráfico. 

 

De todo modo, não se questiona o fato de que essas grandes empresas, mesmo diante da crise anunciada há dez anos, mantêm-se poderosas e tampouco se discute o conteúdo de sua produção veiculada nas rádios e outras mídias que operam a partir de estratégias de mercado dos respectivos lugares. 

 

A migração de unidades de negócio pode ser a resposta para que esses agentes hegemônicos se mantenham no poder. Se, de um lado, perde-se na venda de discos, de outro, ganha-se com a venda de semoventes musicais. Esse arquétipo instiga a ponderar novas formas de negócios desses grandes grupos.

 

O computador aponta a uma nova edificação social e técnica a redimensionar a temporalidade contemporânea e ao autorizar a produção, distribuição e consumo de música. 

 

A Internet, enquanto fenômeno técnico – que é também social e, portanto, geográfico -, é a nova grande possibilidade do momento histórico11. Nossa percepção não está ancorada apenas na materialidade concreta dos objetos, mas na forma pela qual é realizado seu uso. Por essa razão, preocupa-nos a conduta e o modo pelo qual os indivíduos agem. 

 

A individualização dos semoventes, com a difusão dos audiofones, das possibilidades tecnológicas, a difusão dos sistemas de informática com a computação, Microsoft e Apple como sistemas hegemônicos, tendem a potencializar a banalização de técnicas às diversas camadas da população brasileira12. Esse novo arranjo do uso do território é propiciado a partir da creditização pela via do consumo do qual nos fala María Laura Silveira (2009, p. 68)13. É a cristalização de outro sentido existencial ao homem, pelo acesso à técnica e pelo incremento do consumo dessas parcelas de população.

 

Gilbert Simondon (2007, pp. 234-235), no livro O Modo de Existência dos Objetos Técnicos, pondera sobre o papel central do indivíduo no entendimento da realidade e da estrutura do pensamento técnico.

 

“Os objetos técnicos de emprego muito variado podem implicar esquemas análogos; a verdadeira unidade elemental da realidade técnica não é o objeto prático, mas o indivíduo técnico concretizado. Por meio de uma reflexão sobre esses indivíduos técnicos concretizados é possível descobrir os verdadeiros esquemas técnicos puros (como aqueles dos diferentes modos de causalidade, de condicionamento, de comando)”.

 

O uso da técnica pelo homem redimensiona sua vida sobre o planeta, sua experiência, suas relações e o modo como concebe o mundo. Georges Friedmann (1962, p. 46), afirma que “O fundamento da atividade do homem tendo sido de tal modo modificado em suas profundezas, que não nos surpreendemos se seus modos de sentir e de pensar o sejam igualmente”. A racionalidade do objeto impõe a racionalidade também da ação, que por seu turno, cria novos objetos, em um jogo dialético.

 

O consumo técnico moderno é alicerce da nova face da produção musical pelos atores do circuito superior marginal, suas potencialidades, mas também seus constrangimentos. A compra de mesas de som, microfones, cabos, investimento em infraestrutura no estúdio e técnicas de sonoridade acústica integra o conjunto de técnicas que despendem constantes investimentos. 

 

Estúdios com valor mais alto no custo de seus serviços tendem a ter melhores equipamentos e maior volume de clientes. Enquanto que estúdios munidos de menor quantidade de equipamentos de trabalho, tendem a ter um menor valor agregado ao custo do serviço e uma menor quantidade de clientes. Por essa razão, o investimento em equipamentos e instrumentos de trabalho é tão importante na produção musical, sobretudo porque agrega valor ao custo de produção final. 

 

A força da instrumentalização na atividade ganhou novos contornos. Os programas para operacionalizar as gravações digitais, hoje, são imperiosos no cotidiano dessa presteza. Entre esses estão o Sony Sound Forge, Protools, Cakewalk e Nero que permitem o ajuste digital das gravações, como volume, equalização e afinação de voz. 

 

O uso da informática, microcomputadores, mesas de som e programas específicos nas gravações, criam especificidades, dentro do ramo de atividade e da segmentação dentro dele, quanto ao tipo e a especialização do serviço que essas firmas oferecem – estúdios aptos a gravar comerciais para agencias de propaganda, produzir bandas ou fazer ensaios. 

 

Programas de gravação, como mencionados acima, tornados banais, são fabricados pelas firmas do circuito superior da economia, como a Sony ou a Apple, espécies de “marcas-força” que via propaganda orientam o mercado e disseminam novos objetos. 

 

Esse dado é um dos nexos da imbricada relação entre esses dois subsistemas da economia urbana, o circuito superior e inferior, no qual a venda de produtos e licenças é dominada por agentes hegemônicos e o uso, a compra e aquisição, são realizados pela porção marginal do circuito superior e do circuito inferior. Em especial, nesse ponto, é que o circuito superior marginal e inferior se relaciona com o circuito superior: pela técnica, já que a técnica acaba por associar em uma mesma lógica todo os conjunto de atores, não importa seu tamanho ou poder. 

 

O consumo e o reinvestimento em capital fixo são constantes. É comum aos estúdios de gravação musical ter algum equipamento de trabalho comprado usado, como mesas de som, amplificadores, microfones de diversos modelos, caixas de som para diversos fins e instrumentos musicais – bateria, piano, violão, guitarra.

 

Em entrevista nas metrópoles da investigação há a tendência de as empresas investirem em equipamentos cada vez mais sofisticados. Em Goiânia, o proprietário de um estúdio de gravação e ensaio declarou ter trazido equipamentos do Japão, como as mesas de som, microfones e softwares. 

 

Essa empresa tem três anos e o prédio está em reforma desde sua fundação. O local é alugado e, diferentemente dos demais entrevistados, não reside no lugar em que trabalha. O valor do aluguel é entre R$ 500 a R$ 1000. Diante das entrevistas realizadas constatamos que o custo do aluguel é mais baixo em capitais fora do eixo Rio-São Paulo.

 

 

 

Fotografia 2. Goiânia. Equipamentos de Trabalho e Fachada da Empresa de Gravação. Autor: Villy Creuz

 

Averiguamos que a produção musical na cidade de Goiânia ascende, sobretudo, em razão de que, agora, os clientes não mais recorrem às empresas instaladas nas cidades do Rio de Janeiro ou São Paulo. Isso fez com que vários artistas da região Norte e Nordeste do país escolhessem Goiânia para fazer seus trabalhos em detrimento das cidades da região concentrada.

 

O uso de equipamentos de ar condicionado comum a maioria dessas empresas possui uma dupla função: (i) resfriar os equipamentos de trabalho e (ii) permitir a entrada de ar num ambiente fechado em decorrência do isolamento acústico necessário à captação do som.

 

A profusão de objetos resulta em novas funções. A banalização técnica é possível, muitas das vezes, pela compra de equipamentos e instrumentos de trabalho usados. Na cidade do Recife constatamos que o custo para aquisição de equipamentos usados é bem reduzido e as formas de pagamento são diversas, desde cheque, dinheiro, cartão de crédito e pagamento a prazo. Em geral, os clientes são profissionais ligados à música, proprietários de estúdios e gravadoras, músicos e produtores musicais. 

 

 

 

Fotografia 3. Recife. Venda de Equipamentos Usados no Centro Antigo. Autor: Villy Creuz

 

O aumento da demanda musical, impulsionado por novos artistas, grupos musicais e pelo ensino de música nas séries básicas e fundamentais, implica também no aumento da venda de instrumentos musicais. O crescimento da oferta de equipamentos de trabalho a permitir a oferta do serviço de produção também estimula essa nova distribuição social e territorial do trabalho nas metrópoles.

 

Se nosso intento é encontrar novas formas de trabalho no uso do território, parece-nos pertinente ponderar sobre modelos de desenvolvimento externo e toda ação que esses modelos implantam. Hassan Zaoual (2006, p. 59) propõe recusar perspectivas que criam àquilo denominado pelo autor como “guerra invisível”, isto é, os pretextos para justificar ações verticais nos lugares, como “subdesenvolvimento, economia de subsistência, pobreza, demografia, etc”. 

 

As cidades, o epicentro dessa imensa massa de pessoas, da diversidade de demandas e da pluralidade de cosmovisões, acolhe a todos os atores e gera uma economia em que cada um produz, consome e distribui, em diferentes escalas e com diferentes intencionalidades. Nas palavras de Zaoual (idem, p. 78), “É uma economia da diversidade cujas raízes estão nos múltiplos registros do social a partir dos quais o homem conduz sua vida cotidiana”. Ou seja, um novo tipo de economia, no qual a força vem de baixo, criando resistências às racionalidades exógenas do período da globalização. 

 

Essa economia dos pequenos está em toda parte, em todos os ramos de firmas, em todos os segmentos da sociedade e a vemos na música, como manifestação de outro arranjo do mercado e da cultura, ou melhor, noutro uso do território.

 

Mercado não-hegemônico da Música

 

Diante dessa dinâmica novas ações estão a se desdobrar na economia das cidades a partir da música. A difusão musical, controlada, mormente, pelos atores hegemônicos passou a conhecer novas saídas: os festivais, o “boca a boca”, as vendas de discos em casas de show e transmissão pela web. 

 

A propaganda e a difusão é o entrave central para o mercado dos atores dos circuitos superior marginal e inferior. Há vias alternativas, ainda que menos visíveis, possíveis pela Internet (acesso a blogs, Orkut, facebook, MySpace).

 

A difusão e a propaganda acontecem também na venda consignada em bancas de jornal, em camelôs, em feiras, no transporte coletivo e nas ruas das metrópoles. Tudo isso revela a pluralidade e formas de acontecer menos visíveis, mas nem por isso, menos fortes diante da influência dessa cultura popular feita “de baixo” na organização do espaço geográfico. A espontaneidade da arte estimula o sentido existencial à vida urbana.

 

Essas múltiplas formas de soluções criativas são, segundo nosso olhar, resultado de reinventadas ações a fim de escapar do escamoteamento da formação do homem médio, que tende ser cada vez menos livre, cada vez mais dominado por uma ação racional depreciativa, muitas das vezes sedimentada pela força da informação. 

 

Jürgen Habermas (2009, p. 105) dirá que “a substância da dominação não se evapora apenas diante do poder de disposição técnica; pode muito bem entricheirar-se por detrás desse poder. A irracionalidade da dominação, que se converteu hoje num perigo vital colectivo, só poderia ser dominado através da formação de uma vontade colectiva, que se ligue ao princípio de uma discussão geral e livre de domínio”. As palavras inspiradoras de J. Habermas nos conduzem a outro princípio de racionalidade, no qual se desdobra no fomento à resistência diante da onda de inovações. Nesse sentido, Edward Said (2003, pp. 40-41) reforça essa ebulição ao asseverar que “o lar provisório do intelectual é o domínio de uma arte exigente, resistente e intransigente, dentro da qual não é possível, infelizmente, nem se esconder, nem procurar soluções”. 

 

Essa contínua busca, nesse esforço permanente, é resultado de uma configuração que se apresenta como possível. Novos usos do território são possíveis porque as possibilidades técnicas são diversas e as escolhas políticas estão sempre em aberto, em outras palavras, para a política, em seu sentido mais largo, o mundo é o resultado de escolhas pretéritas, com o futuro enquanto projeto.

 

Se a música é também formadora de nossa sociedade, da psicoesfera (Santos, 1996) e se a ação através da música é transformadora, isto é, nas palavras precisas de Daniel Barenboim (2008, p. 125), “O poder da música reside em sua capacidade em se comunicar com todos os aspectos do ser humano”. E, se acreditamos que dela subtraímos aspirações, emoções, anseios, e, sobretudo, podemos dar voz as contra-racionalidades, mediante a existência de micro e pequenas empresas e atores sociais ligados à música, temos, portanto, razões concretas para acreditar em mudanças no quadro da história humana. 

 

Se o futuro é um perene porvir e se nossas escolhas podem ganhar novas direções, as realizações de projetos comuns, sem objetivos comuns, aportado nas escolhas de um presente, estão abertas. O futuro está em aberto. E as grandes metrópoles são o lugar de excelência desses câmbios.